sexta-feira, 31 de julho de 2009

veneno (ii)

A luz começou por invadir devagar o castelo. Os demónios recolhiam, ainda com laivos de sangue nas garras, enquanto já se ouviam os trinados das andorinhas que fizeram ninho por cima da janela do quarto da princesa. Felizes essas andorinhas, cantavam agora para um novo dia, enquanto ela ainda chorava.
Os olhos que horas antes fixaram o escuro, viam agora o seu pequeno império tomar formas com a luz da manhã. E a Consciência, que horas antes a tinha confrontado, emprestava-lhe agora o colo para que chorasse. E durante horas assim ficaram, sem se olharem e sem falarem.
Os seus olhos permaneciam imóveis e frios. Ao corpo despido e gelado, apenas o soluçar e as lágrimas que lhe riscavam a face pareciam dar sinais de vida. Vida essa que parecia desvanecer-se numa dor vazia, mas maior que a mágoa e mais funda que o desalento. A culpa. A sua e a dos outros. Essa imensa pedra que lhe esmagava o peito.
Exausta, a princesa rendeu-se ao cansaço e foi finalmente vencida pelo sono. Antes de fechar os olhos, deixou escapar em surdina “Qualquer dia fujo outra vez…”.
A Consciência tapou-lhe o corpo, secou-lhe as lágrimas e afagou-lhe o cabelo. Fechou as janelas para esconder o sol que já ia alto. Também ela exausta, sentou-se no seu cadeirão. Mas antes de fechar os olhos, respondeu em surdina “Fugir para onde, princesa? Se nunca poderás fugir de ti…”.
(Caracois-L)